quarta-feira, 19 de novembro de 2008

A FICÇÃO CONTEMPORÂNEA URBANA (1970 AOS NOSSOS DIAS)

A partir da década de 1970, a ficção brasileira de temática urbana foi condicionada por uma série de novos fatores econômicos, políticos e sociais, a saber:
· - A ditadura militar prolongou-se por muito mais tempo que os oposicionistas imaginavam. O que era visto apenas como um golpe, condenado a curto prazo ao fracasso, consolidou-se como um longo regime com significativo apoio popular. Contudo, a crise do petróleo de 1973, os altos custos de empreendimentos estatais e as graves dificuldades do capitalismo internacional em fins dos anos 70 e início dos 80, fizeram com que a inflação se tornasse incontrolável. Só então a ditadura conheceu a impopularidade.
· - Obrigados a entregar o poder à oposição confiável (Tancredo Neves-1985), os militares retiraram-se discretamente da política brasileira para não mais voltar. Uma democracia ampla e bastante liberal estabeleceu-se no país. A censura foi abolida, o habea-corpus restabelecido e as diversas formas de controle social foram completamente abrandadas. No entanto, a redemocratização não trouxe nem o controle da espiral inflacionária nem o retorno ao desenvolvimento. A derrubada da inflação viria ocorrer apenas com o Plano Real, em 1993.
· - Os ideais esquerdistas-autoritários que imperavam entre a intelectualidade brasileira foram golpeados pelo desmantelamento da guerrilha (1969-1972) e, mais tarde, pela queda do Muro de Berlim e pelo colapso geral do socialismo. Muitos artistas e escritores viraram então "órfãos da utopia". Também o chamado "radicalismo democrático" da esquerda mais recente tem sido bastante abalado com a tendência centrista do governo Lula, o primeiro presidente a ser eleito por forças progressistas no país. Por isso, a "intelligentzia" parece ter perdido todos os seus referenciais utópicos, o que ajuda explicar um certo ceticismo generalizado que percorre a produção cultural contemporânea.- Por outro lado, de 1970 para cá o Brasil configurou-se definitivamente como uma nação capitalista e moderna, ainda que cheia de desigualdades sociais. O espetacular crescimento econômico da década de 1970 (em média quase 10% ao ano) atraiu milhões de trabalhadores rurais para as cidades. Muitos se integraram satisfatoriamente à vida urbana; outros foram sobreviver em favelas que brotaram aos magotes. Hoje elas circundam as principais metrópoles do país. Nas décadas de 1980 e 1990, as taxas de crescimento da economia baixaram significativamente, não permitindo uma efetiva integração das camadas pobres ao establishement nacional.
· - Ainda que o êxodo rural e o pífio desenvolvimento econômico dos últimos anos expliquem a ampliação do número de miseráveis, outra circunstância tem peso decisivo neste processo. A ilimitada liberação sexual, que estimulou a gravidez sobremodo entre adolescentes, fez com que, entre a população marginal (ao contrário de outros setores) o aumento da natalidade tivesse uma progressão geométrica, criando um problema praticamente insolúvel: como integrar ao sistema econômico os mais de cem milhões de brasileiros gerados nas últimas décadas?
· - Ao mesmo tempo, no plano dos valores, assistiu-se à derrocada final dos códigos de existência da sociedade patriarcal/agrária, substituídos por novos comportamentos e novas expectativas, todos correspondendo a princípios urbanos e capitalistas. O domínio do individualismo, a busca da felicidade pessoal, tanto em seus aspectos emocionais quanto sexuais, o culto ao dinheiro e à fruição de bens de consumo constituíram, a partir de então, os pilares éticos da nova sociedade brasileira.
Face a tais transformações – vertiginosas e radicais – os escritores tiveram uma experiência coletiva de esfacelamento e pulverização da realidade, quando não de caos. A velha ordem desabava e um mundo instável, frenético e aparentemente irracional ocupava o seu lugar*.Todas estas mudanças influenciaram decisivamente a prosa de ficção de temática urbana das últimas décadas. Apesar da proximidade histórica do período, podemos apontar algumas das tendências essenciais que configuram a atual produção ficcional brasileira:
1) Desintegração das formas realistas tradicionais, que haviam predominado (com as exceções de Clarice Lispector, Murilo Rubião e João Guimarães) até o fim da década de 1960. A partir dos 70, rompe-se com a linearidade narrativa e abandona-se toda a pretensão de uma concepção totalizante e lógica do mundo. Em admirável ensaio, José Hildebrando Dacanal fixou o caráter desta decomposição do realismo:
O mundo está destroçado e não há como remontar seus estilhaços. Os personagens padecem de total desorientação, sendo incapazes de organizar-se a si próprios e, muito menos, ordenar o universo à sua volta. Desesperados, buscam uma verdade, sem saber se há possibilidades de encontrá-la. Ou nem mesmo a buscam, limitando-se a sofrer ou a protagonizar a desordem, a violência física e moral e a destruição das formas de convivência social. (...) À desintegração ética corresponde à desintegração técnica, com a estrutura narrativa revelando-se desordenada, fragmentada e geralmente sem um foco narrativo, ou ponto de vista único ou claramente definido.
Entre os autores que expressam esta tendência encontramos Rubem Fonseca (O caso Morel, Lúcia Mcartney); Ivan Ângelo (A festa); Roberto Drummond ( D.J. em Paris); Antonio Torres (Os homens de pés redondos, Um cão uivando para a lua e Essa terra); Lygia Fagundes Telles (As meninas); Márcio Souza (Galvez, o Imperador do Acre); e Sergio Sant´Ana (Confissões de Ralfo). Contudo, quem condensou mais radicalmente as inovações técnicas e expressou mais fielmente a natureza caótica da época foi Ignácio de Loyola Brandão com o polêmico romance Zero.
Não se pode subestimar tampouco a poderosa influência exercida sobre estes autores pelos ficcionistas do chamado “boom latino-americano”: García Márquez, Alejo Carpentier, Mario Vargas Llosa e Carlos Fuentes, entre outros, já tinham equacionado o problema da construção de um mundo romanesco, valendo-se de procedimentos narrativos revolucionários e ao mesmo tempo sendo capazes de apresentar sugestivas totalizações da realidade. Eram, portanto, modelos insuperáveis da nova ficção que aqui se procurava fazer.
Ressalte-se, por fim, que já no final da década de 1970 e nas décadas seguintes, esta força de desintegração, que parecia arrastar a prosa brasileira para o caos, recuou, dando lugar a uma razoável síntese entre ruptura e tradição, fragmentação e criação de mundo. Esta síntese poderia ser designada como uma nova forma de realismo. Quem melhor a elaborou nos últimos trinta anos foi Rubem Fonseca, especialmente em seus contos. Entre os autores recentes cabe papel de destaque a Miltom Hatoum com os excelentes romances Relato de um certo Oriente e Dois Irmãos.
2) A impossibilidade de uma visão totalizante da nova realidade – a busca da totalização é uma das características principais do romance – pode ser a causa do triunfo do conto, que se tornou o gênero mais praticado no país a partir dos anos 70. Lidando com o relato breve, o registro de um flagrante da existência, o conto passa mais ou menos incólume pela desintegração de sentido de uma época. Daí a quantidade de bons contistas que surgiram então. Entre eles destacam-se Sérgio Sant’Anna (Confissões de Ralfo); Deonísio da Silva (Exposição de motivos); Luís Vilela (Tremor de terra); Sérgio Faraco (Hombre); Domingos Pelegrini (O homem vermelho).
3)Paradoxalmente, nos mesmos idos de 1970, ressurgiu uma espécie de realismo social à moda antiga, traduzido por relatos que representavam de maneira direta os dramas das camadas subalternas, sem muitas preocupações com a linguagem.
Era uma resposta à censura imposta pelo regime militar que proibia a imprensa de noticiar os aspectos negativos do país. Era também uma forma de solapar a idéia do "milagre econômico", então dominante nos meios de comunicação, através do registro dos excluídos, das prostitutas, dos operários, dos camponeses, da gente sem eira nem beira, todos sonegados da visão ufanista do governo. Muitas destas obras não passavam de reportagens ficcionalizadas, escritas por jornalistas que se utilizavam da ficção para driblar a censura. O expoente do grupo, contudo, era um bom escritor, João Antônio, que tinha produzido os seus melhores contos nos anos de 1960 e que agora, como um cavaleiro andante, lutava para que os pobres do Brasil encontrassem seu lugar na literatura. No prefácio de Malditos escritores, João Antônio defende a arte como “um corpo-a-corpo com a vida”
Estes escritos cometem (intencionalmente) quase todas as heresias diante de alguns conceitos tradicionais do purismo do fazer literário. (...) Desse corpo-a-corpo nasce uma escritura descarnada.(...) a refletir sem floreio, impostura ou retoques, um mundo de suores, amordaçamentos, pelejas e medos.
Nesta linhagem do realismo social explícito figuram Wander Pirolli, Domingos Pellegrini Jr.Mais recentemente a obra de Paulo Lins, Cidade de Deus poderia ser enquadrada na referida tendência, com a vantagem de apresentar uma "visão de dentro" do universo semi-marginal urbano.
4) Neste período, a ficção introspectiva, à maneira de Clarice Lispector, foi reafirmada nas obras de Caio Fernando de Abreu, Morangos mofados, João Gilberto Noll, Hotel Atlântico e Lya Luft, As parceiras, entre outros. De certa forma, a exploração da subjetividade e a procura da identidade mais profunda dos seres era produto do grau maior de complexidade alcançado pela sociedade brasileira.
5) A partir da década de 1980, possivelmente como uma reação à desintegração das formas tradicionais de narrativa, ganhou espaço o romance histórico, isto é, aquele que evoca fatos e/ou personagens do passado reinterpretados por meio de uma visão crítica e desmistificadora. Normalmente este tipo de romance mantém-se dentro de um código mais ou menos acadêmico de narrar, contrariado experiências similares realizadas por ficcionistas do "boom hispano-americano", na mesma época, marcadas por densa invenção formal. Ana de Miranda, Boca do Inferno, A divina quimera e Luiz Antonio de Assis Brasil, Videiras de cristal e Concerto campestre são os principais representantes do romance histórico. Mas observe-se que escritores de outra linhagem, a exemplo de Rubem Fonseca, O selvagem da ópera, de Nélida Piñon, República dos sonhos, de Deonísio da Silva, A cidade dos padres e de Moacyr Scliar Sonhos tropicais, também se aventuraram neste terreno com resultados estéticos diversos.
6) Nos últimos anos assistiu-se, por fim, a uma crescente propensão de inúmeros escritores à fabricação de "best sellers", sob encomenda de editores ou não. São romances e novelas que atendem a presumíveis exigências do mercado: temas leves e pitorescos, reconstituições históricas convencionais, registro superficial dos costumes e da psicologia dos protagonistas e completa banalidade estilística. Trata-se de uma ficção descartável e freqüentemente idiota. Com muita propriedade o crítico Flávio Khote designou esses relatos como integrantes de uma nova categoria literária, a da narrativa trivial.

2. A prosa de ficção
No campo da ficção, em relação aos mundos narrados, duas tendências gerais predominaram no período:
Obras de temática rural
Obras de temática urbana
A narrativa de temática urbana
A ficção urbana brasileira, produzida entre os anos de 1945 e 1960, tem alguns elementos definidores do ponto de vista estrutural, lingüístico e temático:
A questão estrutural:
A par do romance, que continua sendo praticado, o conto começa a ganhar cada vez mais espaço.
A formulação narrativa da maioria dos autores do período ainda está próxima do modelo neo-realista. Surge um desvio neste modelo tradicional de narrar através da obra revolucionária de Clarice Lispector, marcada por inovações técnicas e sobretudo pelo uso intenso do monólogo interior.
Outra linha de ruptura com o procedimento realista ocorre com a publicação, em 1947, do livro de contos O ex-mágico, do autor mineiro Murilo Rubião. Os seus relatos são alegóricos, ou seja, centram-se em situações inverossímeis ou simplesmente fantásticas que possuem um caráter simbólico.
A questão lingüística:
Sedimenta-se a aproximação - desencadeada pelos modernistas de 1922 - entre a linguagem literária e a linguagem coloquial urbana, conforme se pode verificar, entre outros, nas obras ficcionais de Fernando Sabino e de Carlos Heitor Cony.
A questão temática:
O neo-realismo explicitamente social continua sendo cultivado, sobremodo na década de 60. Sua tradução mais qualificada dá-se na obra de Antônio Callado, que busca registrar de modo amplo e totalizante dos dramas coletivos do país.
Há também um neo-realismo timbrado pela tentativa de síntese entre a realidade objetiva e uma densa subjetividade. Os romances de Lúcio Cardoso, Fernando Sabino, Autran Dourado, Carlos Heitor Cony e os contos de Lygia Fagundes Telles, por exemplo, expressam a dissolução do engajamento ideológico dos anos 30 e 40 e sua substituição por sensações de angústia e náusea, revelando influências do pensamento de Freud e de Sartre.
Absolutamente originais no contexto de sua época são as obras de Clarice Lispector e de Dalton Trevisan, cujos livros inaugurais vieram à luz respectivamente de 1944 e de 1954. Clarice cria no Brasil um tipo de ficção introspectiva em que o mundo concreto se torna quase opaco e pastoso, e os personagens mergulham em um grande vazio. Já Trevisan renova a linguagem do conto e disseca sem compaixão o pequeno universo das classes médias urbanas.
Não devemos esquecer, por outro lado, que alguns dos maiores romancistas de 1930 ainda estavam em plena atividade. Erico Verissimo, por exemplo, escreve nesta época sua obra-prima: O tempo e o vento. Também Jorge Amado produz alguns de seus textos mais apreciados como Gabriela, cravo e canela e Os velhos marinheiros.
3. A nova narrativa de temática agrária
Um fenômeno novo marcou a ficção brasileira, a partir dos anos de 1950: um conjunto de relatos centrados no mundo rural, mas distantes dos padrões convencionais de realismo, que se encontravam, por exemplo, no chamado romance de 30.
O crítico José Hildebrando Dacanal designou esses textos como "nova narrativa épica brasileira". São obras que fixam o "desaparecimento do interior caboclo-sertanejo, face o avanço vertiginoso da civilização racionalista, capitalista e urbana." Esta civilização, nascida no litoral, e que avançava rumo ao oeste, era o fruto da expansão burguesa ocorrida, principalmente, durante a Era Vargas e a Era JK.
Outros críticos referem-se a tais obras como integrantes de um ciclo de "realismo mágico", pois eventos extraordinários ( e inverossímeis do ponto de vista do racionalismo urbano) ocorrem nas mesmas. Os personagens dos relatos vivem esses acontecimentos estranhos sem que isso os surpreenda. Ou seja, a sua consciência de mundo admite como real e natural o que julgamos inconcebível.
Basicamente esta tendência compõe-se de seis romances: Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, - o mais significativo de todos - e que, ao ser publicado em 1956, abriu caminho para a criação de um novo modelo narrativo no país; O coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho, que veio à luz em 1964; Chapadão do Bugre, de Mário Palmério, lançado em 1965; A pedra e o reino, de Ariano Suassuna, que é de 1970; Os guaianãs(em quatro volumes saídos entre1962 e1970), de Benito Barreto; e Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, publicado em 1971.
As características mais ou menos comuns a todas essas obras são de natureza lingüística, estrutural e temática:
Lingüisticamente, há uma forte presença, ainda que as vezes residual da variante caboclo-sertaneja da língua portuguesa, transfigurada do ponto de vista do estilo por cada autor.
Estruturalmente, a verossimilhança, típica do romance tradicional, não é respeitada, com protagonistas relatando a própria morte, presença de demônios e outras entidades míticas.
Tematicamente, todas as obras possuem um traço comum: a ação se desenvolve, preponderantemente, no interior, no sertão, em regiões de pequena propriedade ou de criação de gado, surgindo não raro um conflito entre este mundo agrário - e os protagonistas dele procedentes - e a civilização urbana. Além disso, como já frisamos, é também freqüente a presença de seres superiores, como Deus e o Diabo, ou entes mitológicos, como a sereia, o lobisomem, etc.
Em termos gerais, pode-se dizer que estes romances se ligam, no plano do assunto, ao Brasil antigo, pré-industrial, marcado por uma cultura rural e religiosa, de raízes ibéricas, transformada ao longo dos séculos.

Referências

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 38. ed. São Paulo: Cultrix, 2002.
JAKOBSON, Roman. Lingüística, poética, cinema.São Paulo: Perspectiva, 1970.
__________ Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, (s.d).
Literatura contemporânea.in.:http://educaterra.terra.com.br/literatura/litcont/litcont_4. acesso em 19 de novembro de 2008.

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