“UM OUVIDO, POR UM OLHO”: DICOTOMIA ORALIDADE- ESCRITURA
Enquanto a fala humana se constitui de sons, a escrita depende de sinais visuais. Lajolo; Zilberman, 2010, p. 50
A sociedade contemporânea tem nos dito e lembrado a todo instante por vários meios de comunicação de que somos sujeitos da cultura escrita e, por excelência, grafocêntricos. Entretanto, importa dizer que os maiores e mais emocionantes momentos de nossas vidas são expressos através da oralidade. Dizendo de outro modo, quando estamos muito felizes ou tristes expressamos oralmente nossas emoções por meio de gritos, choros e exclamações – que não comportaria nesse texto citá-las – mas, todos sabem como eles nos vêem à boca.
Dessa maneira, Zumthor (2010) sugere que a vocalização de palavras é, em si, um ato humano espontâneo, porque a voz constitui-se na exposição do acontecimento de modo a acompanhar o movimento corporal de seu enunciador; além do visual e do tátil conforme seria se tal expressão fosse veiculada pela escrita.
Por outro lado, se tem a discussão que aponta a escrita como responsável pelo enfraquecimento da dinâmica social do pensamento oral – Platão – uma vez que, os sentimentos fixados no papel impedem à dinamicidade de sua interpretação tal qual ocorreria quando de sua exposição verbal na praça pública.
Nesse contexto, Lajolo e Zilberman (2010) corroboram com essa discussão quando chama a atenção para o processo homogeneizante que a cultura da escrita assume sobre a oralidade, visto que a tradição popular que antes se mantinha na perspectiva de transmissão de saberes e conhecimentos “boca a boca” de geração a geração, agora precisa da reificação da escrita. [...] sacramentada pelo discurso da crítica – sempre escrito – que a tradição popular oral parece ganhar legitimidade, como se para ser reconhecido e valorizado, o mundo da voz precisasse da chancela letrada. (LAJOLO; ZILBERMAN, 2010, p. 44).
Histórico e culturalmente, a ideia da cultura escrita que sobrepôs à cultura de oralidade, se fundam em princípios civilizatórios impostos pelos europeus, uma vez que eles detinham a partir da tradição religiosa, o conhecimento dos dois códigos escrito e oral. Isto, sem dúvida, os diferenciava dos outros povos de cultura oral. Logo, considera-se que tal deferência feita à escrita ao longo de séculos de dominação só ampliou o domínio social, político, econômico e cultural dos que escreviam e liam sobre aqueles que não conheciam o mundo das letras e, permaneciam atuando no plano da comunicação oral.
Ainda que esta dicotomia seja uma realidade, há comunidades que, talvez por atraso sócio-econômico ou escolar e cultural tentam manter em seus costumes através da oralidade; principal tecnologia de transmissão do conhecimento. Não obstante a presença contínua de “oralidade secundária” via mídia massa tente-se fortalecer esses traços distintivos, Lajolo e Zilberman (2010) afirma que em tais contextos é perceptível que “escrita e oralidade comunicam-se, entrelaçam-se, misturam-se. Imbricam-se, fundem-se; afastam-se, reaproximam-se, reafastam-se. Sobrepõem em um incansável e sempre renovado modo de ser.” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2010, p. 45).
As autoras mostram ao longo de suas teses, exemplos retirados de literaturas regionais, nos quais os interlocutores, mesmo que distintos social e culturalmente, trocam experiências por meio da oralidade, todavia, há sempre aquele que ver no registro escrito de algo que chama a atenção ambos na conversação como sendo necessário, prevalecendo assim, o olho sobre o ouvido. Vale ressaltar aqui, como essas questões se articularam muito bem na microsserie global, Hoje é dia de Maria na qual se compilaram falas da cultura popular, fazendo modificações semânticas e pragmáticas na escrita.
Para Lajolo e Zilberman (2010) isto equivale à ideia de que a escrita está carregada de nuances, isto é, a pontuação se encarrega de articular o ritmo da leitura do texto escrito “Um dos domínios nos quais, com maior clareza, escrita e leitura rendem vassalagem à fala é a pontuação” (Lajolo; Zilberman, 2010, p. 50).
No contexto de comunicação face a face, na qual o interlocutor faz uso de estratagemas presentes na oralização, tentando diminuir as suspeições que pairam sobre a fala. Já no que diz respeito à produção oral, a enunciação, graças à voz tem valor moral na comunidade de tradição popular, porém para ela ganhar ar de verdade e ser respeitar é fundamental que seja escrita. “escreve ai o que lhe digo e verás que é verdade”. Zumthor (2010) corrobora com essa ideia ao defender que também na oralidade se realiza consciência linguística, porque nela expressam-se pensamentos míticos e religiosos através da oralização desses saberes.
Por fim, na cultura contemporânea em que se vive hoje, a escrita sobrepõe a oralidade a tal ponto, que reclama para si a todo instante, o reconhecimento de técnica comunicacional e expressiva humana de caráter superior à tradição oral. Todavia, há gêneros que requerem, no mínimo uma equalização, sendo esta uma escolha ideológica do enunciador. Para além dos exemplos clássicos de literatura citados pelas autoras, cita-se, sem querer compara as qualidades estilística e poética de Rosa, Lobato, claro; na peça Marido a preço da China, de minha autoria, na qual os personagens Côca e Damião dialogam através de uma escrita oralizada, pois se manteve na escrita de tal gênero, os princípios da escrita da oralidade no presente no labor com o cordel e a literatura populares.
Bibliografias:
LAJOLO, Marisa. ZILBERMAN. A oralidade visita a escrita. In. LAJOLO, Marisa. ZILBERMAN.Das tábuas da lei à tela do computador: a leitura em seus discursos. 1. ed. São Paulo: Ática, 2009, pp. 43-55.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.