sábado, 12 de abril de 2008

MACABEA: HEROÍNA TRÁGICA NA METRÓPOLE

Este ensaio traz à discussão a posição do sujeito desterritorializado, isto é, apresenta-se a trajetória da heroína trágica, Macabea. A narrativa A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector é edificada sob o olhar do narrador Rodrigo S.M. que aos poucos demonstra como o sujeito clareceano, Macabea é justaposta aos símbolos socioculturais de um meio social estranho ao de sua origem, cujo drama se inicia e é corroborado pela falta de sentimento de pertença, ou seja, a protagonista vive as mazelas e vicissitudes da nova realidade sociocultural, Rio de Janeiro, e não podia ter nenhuma referência para si. Devido a isso, ela passa por grandes dificuldades em virtude da falta de intelecto e personalidade suficientemente fortes para lidar com os novos desafios que lhes foram impostos pela nova realidade. Restando-lhes duas saídas: i) negar sua origem e construir imaginariamente uma nova identidade; ii) atribuir suas incompetências e desgraças ao destino, passando destarte, a ser uma nova vítima da tragédia. Com isso Rodrigo S.M a posiciona tragicamente, elevando-a ao panteão das vítimas da modernidade, imigração constante das massas e sujeitos. O que se tem a partir daí é o drama interior do personagem em meio à busca e à fuga de sua verdade.
Para Aristóteles em sua Poética, a tragédia se caracteriza por ser:
... imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes (do drama), (imitação que se efetua) não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções. (ARISTÓTELES, 1973:447).
Conforme Estudiosos da obra de Lispector afiançam, A hora da estrela, de Clarice Lispector tem como base as influências da tradição do teatro grego no romance moderno. Isto, sem dúvida é possível de vislumbrar em alguns pontos de contato com o texto trágico, não só no que concerne à transposição de recursos dramáticos para o gênero narrativo, como também no que diz respeito à proximidade de temas entre o texto clariceano e a obra Édipo Rei, de Sófocles, já que os dois textos tratam do desvelar de si mesmo e do próprio destino.
A realidade manifestada em A hora da estrela é dotada de extremo subjetivismo, não sendo uma essência, mas sim uma estrutura plurissignificativa que depende de uma determinada ótica para se manifestar sob uma forma distinta. Assim, na narrativa clariceana é comum o multiperspectivismo, isto é, coexistem o olhar do narrador e o olhar dos personagens, no qual só se pode falar em realidades plurais, uma vez que a protagonista se torna “fantoche”, sendo manipulada pelos fatos sócio-psicológicos que acerca.
Para Aristóteles neste tipo de discurso está presente a epifania, ou seja, é o medo de si dos demais, aqui representado nas ações de Macabea em seu quarto ouvindo o radio-relógio. Isto a leva ao prazer trágico, o qual evocar a catarse, provocando alívio de emoções, através da purgação. A catarse aristotélica, de acordo com o Antônio Freire (1985), consiste na purificação, na moderação, na sublimação dos dois sentimentos mais característicos da tragédia: a compaixão e o terror. Portanto, a protagonista é uma mulher comum, para quem ninguém olharia, ou melhor, a quem qualquer um desprezaria: corpo franzino, doente, feia, maus hábitos de higiene. Além disso, era alvo fácil da propaganda e da indústria cultural (para exemplificar, seu desejo maior era ser igual à Marilyn Monroe, símbolo sexual da época). Nossa personagem não sabe quem é, o que a torna incapaz de impor-se frente a qualquer um.
Dessa forma, Macabea caracteriza-se como sujeito trágico, pois ao longo da narrativa, ela segue de maneira linear seu próprio esvaziamento enquanto sujeito, perdendo inclusive sua autonomia, devido à obediência aos ditames do destino. Se na tradição trágica se diz que o personagem sucumbe devido a um erro cometido por ignorância. Infere-se com isso que Macabea ao nascer cometera seu primeiro erro, passando a ter sua vida definida pelo poder metafísico.
Eu também acho esquisito, mas minha mãe botou ele por promessa a Nossa Senhora da Boa Morte se eu não vingasse, até um ano de idade eu não era chamada porque não tinha nome, eu preferia continuar a nunca ser chamada em vez de ter um nome que ninguém tem mas parece que deu certo. (LISPECTOR, 1998:43).
O trágico não reside na noção do aniquilamento, mas na idéia de que a própria salvação torna-se o aniquilamento. Não é na degradação da heroína que se cumpre a tragicidade, mas no fato de ela sucumbir no caminho que tomou justamente para fugir da ruína. Deste modo, ao tentar escapar de seu destino, fugindo da casa da tia, Macabea encontra em figuras desconhecidas uma possibilidade se compreende enquanto sujeito. Triste, nossa personagem busca consolo numa cartomante, que prevê que ela seria finalmente feliz: “a felicidade viria do "estrangeiro".
Segundo Nietzsche (s/d), em A origem da tragédia, existem dois elementos essenciais na fundação da tragédia: o espírito apolíneo e o instinto dionisíaco. Nascido como conflito, o encontro destes dois estados, através de um milagre metafísico, harmonicamente, dá origem à tragédia àtica. Preso a um destino, o heroína trágica precisa cumprir seu percurso de desnudamento da aparência, o que ocorre através da extinção da individuação apolínea pelo êxtase dionisíaco. Reintegrado ao coletivo, Macabea receberá a gratidão da comunidade, pela qual doou seu sacrifício. Para haver tragédia é necessário o conflito, que irá se instaurar na medida em que os personagens buscam sua autonomia, desafiando os deuses e as leis da polis.
Em A hora da estrela, os acontecimentos – assumidos como história inventada e mediada pelo narrador – se materializam no decorrer da própria escrita: “Pergunto-me se eu deveria caminhar à frente do tempo e esboçar logo um final. Acontece, porém que eu mesmo ainda não sei bem como esse isto terminará”. Aqui, o narrador prefere se concentrar no interior da personagem Macabéa, pois é a partir dele que as reflexões e os conflitos se estabelecem. A heroína de Clarice é apenas mais um dos rostos sofridos dos que imigram para os grandes centros urbanos.
O pathos de Macabéa se relaciona com valores interiores; seu destino em nada influi na vida da cidade: “Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás dos balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam”. Macabéa é a anti-heroína, cuja história tem o valor questionado pelo próprio narrador.
Macabéa também não tem noção de si mesma: “Se tivesse a tolice de se perguntar ‘quem sou eu?' cairia estatelada e em cheio no chão. É que ‘quem sou eu?' provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto.” Macabéa não se questiona; sua ignorância é total. Também não busca nenhuma verdade, não tem esperança no amanhã e no seu destino. O desvendar de sua verdade, que acontece por acaso na fatalidade de seu atropelamento, só lhe é possível na iminência da morte: “Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia de minha vida: nasci.” É preciso ainda mencionar que Macabéa também encontra no final trágico sua forma de redenção – finalmente ela “é”, como personagem central de sua própria história, tornando-se a estrela de sua própria morte.
Para Derrida citado por Hutcheon “o sujeito é absolutamente indispensável. Eu não destruo o sujeito; eu o situo” (Hutcheon, 1991, p. 204). Dessa forma, podemos situar Macabea, conforme ensinamento do pós-modernismo é reconhecer e situá-la nas diferenças das ideologias e subjetividades do sistema, o qual a envolve e absorve nas teias dos sistemas culturais pelos quais ela passou.
Por fim, Macabea, esse sujeito feminino produto da espetacularização da fêmea desprovida de corpo e mente é consumida pela sua própria insignificância diante da grandiosidade do sistema. Mesmo na modernidade o, sujeito, às vezes, nem sempre suporta toda essa superposição de choques, essa impessoalização das relações e a falta de espiritualidade. Tampouco Macabéa o suportou, sobretudo ela que “era à-toa na cidade inconquistável”. O Rio de Janeiro era a cidade incompreensível, inatingível e impossível para Macabéa, na qual não consegui se situar na linguagem simbólica e cifrada da metrópole carioca, a qual acabou a “engolida”; Macabéa não conseguiu se adaptar ao Rio de Janeiro, a cidade toda feita contra ela a levou a uma espécie de afasia. Na chegada quase muda, foi emudecida completamente, pois se tratava de uma lugar, para ela, surda e cega. (FREITAG, 1998).
Referências
ARISTÓTELES. Poética. In: Os pensadores . Vol IV. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
BORELLI, Olga. Clarice Lispector – Esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
CANDIDO, Antonio. No Raiar de Clarice Lispector. In Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.
ÉSQUILO. In: SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
FREITAG, Barbara. O Mito da Megalópole na Literatura Brasileira. Revista do Tempo Brasileiro, nº 132, Rio de Janeiro: 1998.
FREIRE, Antônio. O teatro grego . Braga: Pub. Da Faculdade de Filosofia, 1985.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imafo, 1991.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela . Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
NIETZSCHE, Frederich. A origem da tragédia . /s.l./: Guimarães Ed., /s.d. b/.
NUNES, Benedito. O Drama da Linguagem – Uma Leitura de Clarice Lispector. 2. ed., São Paulo: Editora Ática, 1995.
SÓFOCLES. Édipo-Rei . São Paulo: Abril Cultiral, 1980.
SÁ, Olga de. A Escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1993.
WALDMAN, Berta. Clarice Lispector: a paixão segundo C.L. São Paulo: Escuta, 1992.