quinta-feira, 26 de junho de 2008

DISCURSO: UM ELEMENTO DE IDENTIFICAÇÃO DO SUJEITO

O sujeito na fala: preconceito sociocultural e lingüístico

É através da linguagem que a Sociolingüística procura identificar os reflexos das estruturas sociais e tem por objetivo sistematizar a variação existente na linguagem. A Sociolingüística “considera que o sistema da língua não é homogêneo, mas heterogêneo e dinâmico. As regras, portanto, têm de abranger a variação das formas”. (ORLANDI, 2001:51). Nessa perspectiva o falante de uma língua materna é considerado, e são analisadas as formas lingüísticas usadas pelos falantes em suas respectivas comunidades.
A Sociolingüística relaciona as variantes lingüísticas com as variantes sociológicas, ou seja, com profissão, educação, salário, e ainda com diferenças de raça, sexo, idade, enfim, explica a variação lingüística através de fatores sociais, pois ações lingüísticas e ações sociais são constituídas.
Orlandi (2001, p.55) considera que a língua, mais do que sistema, arranjo de relações abstratas, “se vai passando para uma noção de língua considerada em suas características concretas, de uso, no mundo”.

Se a língua não é mais vista apenas como instrumento do pensamento, como nos formalistas mais ortodoxos, vai-se percebendo que ela também não serve só para transmitir informações, como poderiam deixar crer os que trabalham a linguagem enquanto comunicação. Quando os homens se comunicam, eles fazem muito mais do que apenas informar. (ORLANDI, 2001:55).

Como prova de que o homem não usa a linguagem apenas para informar, (BARRETO, 2005,p.03) em seu ensaio “Desmistificação do erro na oralidade: construção de aprendizagem de LE”, afirma que “o homem é um ser dotado de poder de comunicação, o qual o conduz à reflexão e, conseqüentemente, à produção e propagação do conhecimento”. Para tanto, é necessário o uso da linguagem verbal, cuja prática o homem exerce por excelência.
Voltando a atenção às variantes lingüísticas, veremos que elas podem ser observadas entre a linguagem urbana e a linguagem rural. A linguagem urbana tende, cada vez mais, aproximar-se do que se pode denominar linguagem comum (que é a linguagem que permeia o padrão lingüístico e o subpadrão lingüístico), pela influência niveladora dos meios de comunicação de massa, da escola, da literatura; e a linguagem rural, considerada de menor prestígio, tende a ser arcaizante e, como considera alguns gramáticos ortodoxos, a linguagem dos falantes do povo menos culto.
Para Bagno (2003), “essa mesma relação faz com que a língua das zonas rurais seja mais arcaizante do que a língua das grandes cidades, onde as transformações mais rápidas são acompanhadas no mesmo ritmo por transformações na variedade lingüística” (BAGNO, 2003:124).
Entende-se que os dialetos sociais ou sócio-culturais estão relacionados às classes sociais ou aos falantes que as compõem. Por isso a Lingüística estuda todas as línguas naturais em pé de igualdade, não importando com o grau de desenvolvimento econômico, social ou cultural alcançado pelas comunidades que a falam. Em detrimento da grande injustiça social, acompanhando a desigualdade econômica, observações assistemáticas levam a crer que a escolaridade plena no Brasil, “é um funil por onde só passa uma porcentagem relativamente pequena de brasileiros” (BAGNO, 2003:166), que marcados pelo preconceito lingüístico são bombardeados por atitudes de rejeição diante de determinados interlocutores ou situações.
Os pesquisadores engajados nos grandes projetos de pesquisa lingüística do português brasileiro chegaram à conclusão de que é o nível de escolaridade o principal fator a ser levado em conta na hora de classificar um falante e sua variedade. Nesses projetos, o rótulo falante culto é aplicado ao indivíduo que tem curso superior completo. (BAGNO, 2003:161)

Considerando a língua como criação da sociedade e, ao mesmo tempo, seu reflexo, há que se dizer na existência de falantes que por razões sociais não se sentem retorquidos em seu modo de falar considerando sua norma, a norma padrão, e há, em oposição, falantes que consideram seu modo de falar pouco valorizado e que vêem no outro modelo a forma mais prestigiada e correta. Essa desagregação da linguagem verbal (diz-se, aqui, desagregação no sentido de aceitação e não aceitação) fica evidente em circunstâncias de comunicação onde muito trabalhadores, que necessitam do trabalho e que tem intenção de permanecer, precisam se adequar à forma de linguagem verbal de tal comunidade. Calvet (2002) trata dessa questão referindo-se ao plurilinguismo. “Esta é a situação na qual se encontram os trabalhadores migrantes que chegaram a seu país de escolha sem conhecer ou sabendo bem pouco a língua. Eles são forçados a adquirir essa língua no ambiente de trabalho”. (CALVET, 2002:40). No entanto, há que se admitir que essa mesma problemática se defina dentro de uma única língua, pois apresenta variáveis usadas por comunidades diferentes.
Outro aspecto de variação lingüística importante de ser observado é na variação de sexo, pois é notável a diferença do comportamento social e, por conseguinte lingüístico, entre homens e mulheres. Essa diferença é observada por Pierre Bourdieu (1982:35) citado por Calvet (2002:71) onde ele coloca que,

Como os sociolingüistas freqüentemente observam, as mulheres são mais inclinadas a adotar a língua legítima (ou a pronúncia legítima): do fato de que elas são votadas à docilidade para com os usos dominantes e pela divisão de trabalho entre os sexos, que as especializa no campo do consumo, e pela lógica do casamento, que é para elas a via principal quando não exclusiva, da ascensão social, e onde elas circulam de alto a baixo, estão dispostas a aceitar, especialmente na Escola, as novas exigências do mercado de bens simbólicos.” (CALVET, 2002:71)

Logo, “poderíamos então dizer inversamente que os homens não sentem necessidade de questionar seu modo de falar, que eles o consideram legítimo” (CALVET, 2002:72).
Em decorrência de motivos sócio-culturais e históricos, algumas variedades são consideradas como sendo a melhor, e essa se denomina língua padrão advinda do poder econômico, social e político; as outras variedades são formas lingüísticas consideradas pobres, e vistas é claro, de maneira pejorativa. Essas diferenças são estigmatizadas e, portanto, recebem a maior carga de preconceito e rejeição por parte do conhecedor do português padrão. Em vista disso, a língua já não pode ser considerada apenas valor ideológico, mas como resultado de fatos sociais, passíveis de ser analisados e compreendidos por critérios lingüísticos modernos.
Entretanto, deve-se considerar que todas as variedades da língua são valores efetivos e que não será negando-as e humilhando quem as usa que se fará ascender lingüisticamente tais locutores, pois bem se sabe que o desrespeito pelo diferente não leva a lugar nenhum e que “negar valor ao modo como a pessoa fala seria quase o mesmo que negar valor ao que a pessoa é” (BAGNO, 2003:188). Evidencia-se, portanto, que a língua padrão não é usada como meio de ascensão social, como muitos pensam ser essa a função dela, pelo contrário, ela é usada como mecanismo de exclusão social, de rejeição à forma diferente de linguagem usada por muitos falantes. Assim, o problema não está no que se fala, mas em quem fala e como fala. Então, o preconceito lingüístico é decorrente do preconceito social. E enquanto não houver igualdade social, onde todos possam ser considerados econômicos, social e culturalmente iguais, não haverá, por conseguinte, igualdade lingüística. Dessa maneira, Bagno infere o seguinte:


Como é fácil perceber, o que está em jogo não é a simples “transformação” de um indivíduo, que vai deixar de ser um “sem-língua padrão” para tornar-se um falante da variedade culta. O que está em jogo é a transformação da sociedade como um todo, pois enquanto vivermos numa estrutura social cuja existência mesma exige desigualdades sociais profundas, toda tentativa de promover a “ascensão” social dos marginalizados é, senão hipócritas e cínica, pelo menos de uma boa intenção paternalista e ingênua. (BAGNO, 2005:71)

Em rigor, ninguém comete erro em língua, o que normalmente se comete são transgressões da norma culta. Vale lembrar que a língua é um costume, e como tal, qualquer transgressão, ou chamado erro, deixa de sê-lo no exato instante em que muitos o cometem, passando, assim, a constituir fato lingüístico, registro de linguagem definitivamente consagrado pelo uso. Em vista disso, será útil eliminar do vocabulário palavras como certo e errado ao se julgar as construções lingüísticas de determinados falantes.
A língua pressupõe também cultura e, às vezes, o próprio povo se encarrega de rechaçar uma criação que não se ajuste ao espírito da língua como “evolução natural”. É através da grande variedade de práticas sociais que a aprendizagem, a conservação, a transformação e a transmissão da cultura se realizam, portanto, a linguagem é um fato eminentemente cultural.
Entendendo a língua como um veículo de comunicação, de informação e de expressão entre os indivíduos de uma dada sociedade, pode-se afirmar que todo indivíduo sabe a língua que fala que em linguagem todos são autodidatas, e com pleno êxito. “Todo falante nativo de uma língua sabe essa língua. Saber uma língua, no sentido científico do verbo saber, significa conhecer intuitivamente e empregar com naturalidade as regras básicas de funcionamento dela.” (BAGNO, 2005:35). O que vale lembrar é que, em toda comunidade de fala há formas lingüísticas em constante variação, que uma língua não pára nunca, ou seja, muda sempre e que “o que hoje é considerado como ‘certo’ já foi ‘erro’ no passado. O que hoje é considerado ‘erro’ pode vir a ser perfeitamente aceito como ‘certo’ no futuro da língua” (BAGNO, 2005:143). Portanto, consideram-se aqui, como variantes lingüísticas, as “diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto, e com o mesmo valor de verdade” (TARALLO, 2004:08).
No entanto, para se realizar uma pesquisa sociolingüística é necessário compreender a relação entre língua e sociedade. Essa relação se estabelece ao verificar que a cada situação de fala em que os sujeitos se inserem e da qual participam, nota-se que a língua falada é heterogênea e diversificada. Da mesma forma, essa heterogeneidade existe economicamente, culturalmente, além das diversidades de raça, sexo, idade. Como coloca Luft (1997,p.67) “em sociedades econômica, social e culturalmente heterogênea, é inevitável a heterogeneidade no campo da linguagem”. Assim, cada falante possui um conhecimento internalizado de sua língua e a partir disso é possível dizer que a “gramática” de uma pessoa é mais simples que a de outra, mas nunca que a fala é errada. E ainda, como apresenta Saussure “a linguagem tem um lado individual e um social, sendo impossível conceber um sem o outro” (SAUSSURE, 2004:16). Portanto, fica evidente que o uso particular que cada falante faz da língua pode variar, segundo seu nível de instrução, condição sócio-econômico, idade, região e, principalmente, a situação em que acontece a fala, ou seja, os indivíduos que falam a mesma língua, não falam exatamente iguais, e isso acontece porque o homem, afirmando o que ora foi escrito, pertence a diversos grupos sociais e, consequentemente, é levado a falar de diversas maneiras. Assim, “em toda língua do mundo existe um fenômeno chamado variação, isto é, nenhuma língua é falada do mesmo jeito em todos os lugares, assim como nem todas as pessoas falam a própria língua de modo idêntico” (BAGNO, 2005:53).
Em toda comunidade lingüística há julgamentos de valores tanto lingüísticos quanto sócio-econômicos, portanto, “como qualquer língua, ou variedade de língua, é propriedade de um grupo social, vemos surgir julgamento de valores que se prendem às línguas, quando, na verdade, se aplicam às pessoas que falam essas línguas: tal língua é considerada admirável, outra desprezível” (BUYSSENS, 2002:103), então, fica subentendido o preconceito social disfarçado de preconceito lingüístico. Julga-se a pessoa pelo que ela representa não pelo que ela é, rejeita-se sua origem classificando-a como ignorante ou até mesmo pobre, mas é importante lembrar que poder econômico não corresponde, muitas vezes, com capacidade lingüística.
É muito comum se considerarem as variedades lingüísticas desprestigiadas como erradas e isso acontece porque o valor e a importância dada aos usos lingüísticos são determinados segundo as classes sociais dominantes. Assim, quando alguém fala, logo há a preocupação de observar se trata de alguém ignorante, pobre, de outra região, ou seja, diferente de quem ouve. E percebendo algumas características na fala, quem ouve costuma chamar de erros. É pensando nessa situação desconfortável para os falantes (de achar que sua fala é inferior, errada) que surge a necessidade de uma pesquisa de campo em que se concretizará o que foi estudado em algumas bibliografias sobre a língua materna.
Sendo a língua falada veículo lingüística de comunicação usada especificamente nas situações comuns de interação social, a enunciação dos fatos, as idéias, opiniões, acontecem sem a preocupação de como expressá-las e são essas partes do discurso, ou seja, essas situações naturais de fala que constituem o material básico dessa pesquisa sociolingüística.

FALANTE E LÍNGUA: UMA INTRÍNSECA RELAÇÃO

Introdução: O homem: um ser social

Desde Aristóteles, afirma-se que o homem é um ser social e que, por isso, precisa se comunicar. Necessita, assim, viver em comunidade onde troca seus conhecimentos e suas experiências, que irão levá-lo a assimilar e compreender o mundo em que vive e assim, dando-lhe meios para transformá-lo. Acumulando as experiências de sua comunidade, o homem vai construindo uma cultura própria que é transmitida de geração para geração. No entanto, para transmitir sua cultura e para suprir a necessidade de buscar a melhor forma de expressão de suas emoções, suas sensações e seus sentimentos, o homem se viu diante de certos desafios e um deles foi o de criar e desenvolver uma maneira de comunicar-se com seus semelhantes.
O homem, então, conseguiu criar símbolos e signos de vários tipos, picturais, gráficos e lingüísticos, com o intuito de concretizar a comunicação. Portanto, entende-se que a linguagem verbal é o mais útil e perfeito meio de comunicação humana, constituído por um conjunto de símbolos articulados por meio de palavras, sendo elas orais ou escritas, então a língua é o código lingüístico, visto que utiliza a linguagem, própria e particular de uma comunidade.
Diante disso a Lingüística estuda cientificamente o principal sistema de signos conhecido pelos homens: as línguas naturais, e se baseia na observação de fatos procurando investigar, observar como as diversas línguas se organizam e funcionam, sempre estabelecendo relações entre essas línguas e as comunidades em que são produzidas e utilizadas.
A Lingüística nos mostra que as línguas não são um corpo homogêneo, unitário e estático, mas que evoluem com o tempo, transforma-se e vão adquirindo peculiaridades próprias em função do seu uso por comunidades específicas. Então, como apresenta Evanildo Bechara “mesmo nesse esforço de unidade lingüística, existem fracionamentos quer diatópicos, isto é, regionais, quer diastráticos, isto é, de níveis de língua, quer diafásicos, isto é, de estilo” (AZEREDO, 2001:15). Ou seja, não há que desconsiderar certas construções na fala, desde que haja comunicação. Ainda, em “O gigolô das palavras” Luís Fernando Veríssimo afirma que “a linguagem, qualquer linguagem, é um meio de comunicação e que deve ser julgada exclusivamente como tal”.1 A forma de construção errada da fala são aquelas que não são aceitas pela classe dominante, ou seja, aquela que fala a norma culta do país. Então, quando uma construção lingüística, adquirida por razões culturais, sociais não corresponde ao status de língua padrão os falantes começam a se sentir, por decorrência do preconceito lingüístico, complexo de inferioridade em relação a sua própria linguagem.
Portanto, essas proposições consideradas incorretas, são nada mais que as construções não aceitas pelas classes dominantes da sociedade. Como apresenta os gramáticos, geralmente puristas, o certo é a linguagem das pessoas cultas, educadas, e o errado caracteriza a linguagem das pessoas incultas, não educadas. Mas é importante observar que, numa sociedade econômica, social e culturalmente heterogênea como a nossa, é inevitável a heterogeneidade no campo lingüístico, e como a estratificação lingüística advém de uma estratificação sociocultural, só crescerá o nível de linguagem do cidadão se o mesmo ascender de nível sociocultural.
Bagno (2005) enfatiza com muita propriedade que o tipo mais trágico de preconceito lingüístico é aquele que a pessoa exerce sobre si mesma. Em vista disso, todo falante nativo de uma língua deve ser consciente de que ele é plenamente competente dessa língua. Logo, há que se pregar a consciência da especificidade do povo brasileiro, valorizando a nossa identidade nacional e, conseqüentemente, a nossa cultura já que “diferença não é deficiência” (BAGNO, 2005: 29).
A língua, sendo uma prática humana, revela o uso particular que os falantes fazem dela e a sociedade está ligada à língua de modo bastante aproximado.
Para Saussure, a língua é um fato social, no sentido de que é um sistema convencional adquirido pelos indivíduos no convívio social, é “um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos” (SAUSSURE, 2004:17). Entretanto, toda língua é, sem dúvida, um conjunto de variedades e essas variedades são reais e concretas e, tendo existência na consciência de cada indivíduo, a língua constitui um sistema individual, não que ela seja definida por um indivíduo, mas pelo grupo social ao qual esse indivíduo pertence. Na verdade, a língua vive na fala das pessoas e só aí se realiza plenamente. Deve-se, então, admitir que um falante não atua por imitação ou por estímulo-resposta (behaviorismo), mas acionando um conhecimento implícito adquirido na sociedade em que vive. Chomsky vê nessa capacidade específica, inata, a linguagem ou “faculdade lingüística” de comunicação verbal, e que a língua materna não pode ser ensinada, pois a mesma já é despertada na mente através do convívio social. Essa inteligência lingüística, como diz Luft (1997:57), “pertence à condição do ser humano, ser de linguagem verbal”. Portanto, o saber lingüístico, que é competência plena da linguagem verbal, constitui-se de um sistema completo das regras que orientam os atos da fala.
Sabe-se que a linguagem é, sem dúvida, ubíqua e que sem ela a sociedade, tal como se conhece, não seria possível, pois o volume de conhecimentos, a cultura, tudo é guardado e transmitido pela linguagem. É a linguagem que está em nossos pensamentos, que intermeia as nossas relações na sociedade. Mas, apesar das características da linguagem supra citadas, há quem determine conceitos falsos a seu respeito, inclusive pessoas instruídas, cultas, mas pode-se afirmar que nem mesmo os profissionais da linguagem a compreende totalmente.
Logo, poder-se-ia afirmar que há tantas normas quantos são os falantes, pois cada indivíduo determina seus próprios padrões de uso da língua, ou seja, seu estilo. Entretanto, a norma pode ser social, regional ou individual. A fala é por si só, assistemática e admite uma pluralidade de variantes. Do ponto de vista lingüístico não há norma melhor que a outra, todas apresentam o mesmo valor a partir do momento que servem de veículo para a comunicação. E, diante da pluralidade da cultura brasileira é importante refletir sobre o que é certo e o que é errado na língua. Não se deve dizer, portanto, que este ou aquele nível de linguagem seja errado, pode ser apenas inadequado. No entanto, o nível de linguagem deve variar de acordo com a situação em que se desenvolve o discurso, pois a consciência geral é de que, quando se fala ou escreve, deve-se fazer de maneira proficiente. A língua, enquanto código permite uma multiplicidade de usos que podem ser adotados pelos falantes.
Partindo da concepção Chomskiana de que a linguagem é inata e que por ser o homem dotado de racionalidade, há relação entre linguagem e pensamento, a linguagem oral apresenta algumas variedades, pois a fala pressupõe contato direto com o falante, o que a torna mais concreta e mais espontânea, e em situações formais a falante procura observar as normas gramaticais para se adequar ao nível de linguagem que tal discurso exige.
Enfim, a língua atua na relação entre o sujeito e a sociedade, sua abordagem deve ser feita por sua inserção no contexto social.

Desmistificando o conceito de erro em língua
Toda vez que se fala, faz-se o uso do código geral que é a língua, mas isso não quer dizer que todas as pessoas falem exatamente igual. Mesmo obedecendo a esse código, que é a língua, pode-se combinar, de maneira particular, o material lingüístico que ele dispõe e assim, criar a fala, ou seja, o uso particular que cada pessoa faz do código lingüístico. Portanto, a língua é compreendida como instrumento de comunicação e liberdade. Em vista disso, é importante habilitar-se a falar claro, de forma eficiente, utilizando-se desse bem tão pessoal, a língua, com desembaraço.
A linguagem é considerada inculta, mas não inferior, entretanto, o que se pretende aqui é mostrar que o conceito de erro em língua criou estereótipos dos comportamentos lingüísticos das comunidades desprestigiadas. Assim, a classe social prestigiada impõe, obviamente, a variedade culta, desprestigiando as outras variedades com uma natural discriminação sociolingüística. Mas, para Bagno (2003) “todo mundo fala de um modo que tem explicações na história da língua ou na história de quem fala esta língua. E falar ‘diferente’, como eu venho insistindo o tempo todo, não quer dizer falar ‘errado’” (BAGNO, 2003:103).
Todo falante de uma língua usa variações dela, ou seja, torna-se um poliglota na sua própria língua, como costuma dizer Evanildo Bechara, e ainda sabe adaptar seu discurso de acordo com as circunstâncias. Portanto, o falante pode “usar uma linguagem na rua com amigos, outra com familiares em casa, e outra se tiver de fazer um discurso” (LUFT, 1997:40). Porém, “o pensamento tradicional só aceita a variedade culta, formal, a linguagem policiada, cerimoniosa – todo o resto visto como ‘errado’” (LUFT, 1997:40).
A língua existe para que com ela se pratique a comunicação e interpretação do mundo, mas, às vezes, as pessoas se sentem incapacitadas de encontrar as formas adequadas de comunicação, pois o medo de errar não permite que se comunique com naturalidade. Isso se torna compreensível já que a imperiosa norma culta impõe as formas corretas de falar e não propõe a adequação comunicativa, e uma das marcas específicas da comunicação humana é a capacidade que a língua tem de ajustar-se às necessidades expressivas dos seus falantes. Sendo assim,

Usar uma língua, tanto na modalidade oral como na escrita, é encontrar o ponto de equilíbrio entre dois eixos: o da adequabilidade e o da aceitabilidade (...) Essa nossa tentativa de adequação se baseia naquilo que consideramos ser o grau de aceitabilidade do que estamos dizendo por parte de nosso interlocutor ou interlocutores. (BAGNO, 2005:130).

Apesar da linguagem padrão se diferir muito da linguagem subpadrão, ou seja, a das classes sociais desprivilegiadas, devido a sua importância cultural, política e econômica, ambas diferem muito pouco no que diz respeito as suas capacidades expressivas. Todo falante, culto ou não, sabe a língua, a sua língua, isto é, a língua de sua comunidade, da sua classe social e se expressa de maneira clara e eficiente, independente de conhecer regras de gramáticas artificiais, sua gramática é natural, implícita. É o que coloca Luft (1997):

É próprio de o pensamento tradicional ingênuo supor que a gramática da língua está nos livros, e que os falantes, em maior ou menor grau, estropiam a língua, provocando aquelas afirmações de que “todo mundo fala errado”, como se, primeiro, os gramáticos inventassem as regras, para depois os falantes obedecerem a elas e poderem falar.
O inverso é que é verdadeiro: a gramática está na mente dos falantes, só ali existe em plenitude; as gramáticas (livros), em maior ou menor grau, mutilam a língua, e são todas elas, lacunosas, falhas. (LUFT, 1997:85).

As regras de funcionamento de uma língua são seguidas e usadas implicitamente, “quem fala sabe a gramática da língua; por intuição, sem se dar conta, mas sabe” (LUFT, 1997:87), porém se confunde saber a língua com saber regras gramaticais da língua padrão, e o que se observa é que o falante, mesmo não escolarizado, sabe bem tudo que precisa para falar, e esse saber internalizado o falante adquire com sua convivência lingüística.

O mais importante é compreender que qualquer pessoa quando fala não faz isso sem “regras”. Ela pode estar violando uma “regra” da língua padrão, da língua de cultura, da gramática da linguagem formal, mas não viola a “regra” da sua linguagem, da sua própria gramática. (MURRIË, 1998:20)

A língua, portanto, é um sistema de caráter social, embora só se concretize nos atos de fala produzidos por cada falante, o que implica dizer que o modo de falar também fornece meios para a identificação social, parte-se da língua para definir o grupo social que o falante pertence. Assim, quando se tenta extirpar as formas lingüísticas desprestigiadas de uma comunidade dizendo que são erradas está, conseqüentemente, informando que os seus valores culturais também são errados. Como Bagno (2003) explica:

A língua que uma pessoa fala à língua que ela aprendeu com sua família e com sua comunidade, a língua que ela usa para falar consigo mesma, para pensar, para expressar seus sentimentos, suas crenças e emoções, faz parte da identidade dessa pessoa, é como se a língua fosse à pessoa mesma... (BAGNO, 2003:188).

Estigmatizar a fala de uma pessoa ou comunidade é abafar os talentos naturais, é causar insegurança na linguagem e assim, gerar medo quanto à expressão autêntica e espontânea. “Uma perseguição neurótica de erros só gera insegurança e desamor ao trato com a língua”. (LUFT, 1997:17). E,

Por forças de teorias gramaticais dessa espécie, puristas, reacionários, quantas pessoas arrastam pela vida preconceitos que lhes bloqueiam a livre expressão. Nunca se sentem à vontade no terreno que mais lhes pertence: a sua língua de berço, com a qual pensam, se comunicam e expressam os mais íntimos pensamentos e emoções. (LUFT, 1997:92).

Quando se pensa nos conceitos de certo ou errado na língua é necessário atentar para a questão da legitimidade de uma forma lingüística, pois a norma-padrão muda se não mudasse, “ainda estaríamos falando latim” (BAGNO, 2005:98). Assim:

Ao contrário do que as pessoas em geral pensam os conceitos de certo e de errado não são definidos de uma vez por todas, para todo sempre. Como tudo na vida e no universo muda, a língua também muda junto com tudo mais. É verdade que existe uma pressão muito grande dos defensores da norma-padrão de fazer com que ela fique inalterada, compacta e sólida, mas isso é simplesmente impossível. O que a história das línguas – de todas as línguas – nos ensina é que, ao longo do tempo, não importa qual for a intensidade da pressão normatizadora, a norma-padrão vai sofrer alteração. (BAGNO, 2003:167)

É preciso atentar-se para o fato de que o que é considerado erro pela norma culta é usado com muita tranqüilidade pela maioria dos falantes da língua materna, e que os dizeres pejorativos devem ser retirados, pois não se pode falar de erro já que a forma de linguagem usada pela maioria é perfeitamente entendida. Além disso, urge reconhecer que a língua popular (subpadrão) é mais espontânea, expressiva e dinâmica. Não é possível, portanto, negar a complexidade e dinamicidade da linguagem de qualquer falante, independente do meio de que provém e das experiências lingüísticas que vivenciou ou vivencia. Então, é necessário desenvolver, em todos os falantes sendo cultos ou não, a sensibilidade em relação às variedades lingüísticas e acabar com os preconceitos que privilegiam umas e discriminam e estigmatizam outras, pois aquilo que parece “errado” ou “estranho” no português não-padrão é, na verdade, resultado da ação de tendências muito antigas na língua, que são refreadas, reprimidas pela educação formal, pelas regras de linguagem literária, oficial, escrita, mas que encontram livre curso na boca do povo.” (BAGNO, 2003:113).

Para falar efetivamente a língua materna não é preciso saber regras de gramática, mais que esse conhecimento é o conhecimento intuitivo ou inconsciente que todo falante de uma língua tem, pois “a variedade é de alguma forma regrada por uma gramática interior da língua. Por isso, não é preciso estudar uma língua para não ‘errar’ em certos casos. Em outras palavras, há ‘erros’ que ninguém comete, porque a língua não permite”. (POSSENTI, 2002:35). Portanto, pode-se dizer que as pessoas que falam dialetos desprestigiados são tão capazes quanto as que falam de acordo com a norma culta, pois mesmo sem conhecer regras, “o usuário dá a dinamicidade que a língua precisa para realizar sua função social, comunicar” (BARRETO, 2005:06). De acordo com Luft (1997) “o saber lingüístico, competência plena da linguagem verbal, comporta o sistema COMPLETO das regras que governam os atos de fala, devendo incluir necessariamente regras de comunicação” (LUFT, 1997:85). Assim sendo, é importante esclarecer que a língua é usada de maneiras diferentes, pois é produto de uma cultura, e como tal, é diversificada. E se uma cultura muda, a língua, que possui recursos necessários, também muda com ela.
Observando o prestígio da norma culta que se acentua cada vez mais e a imposição dessa norma como se fosse o único dialeto válido, fica claro que juntamente com as formas lingüísticas também se impõe os valores culturais ligados às formas cultas de falar e isso implica em diminuir valores populares. A língua culta é de fato o modo de falar dos grupos sociais privilegiados, e a formação social dos sujeitos leva-os, infelizmente, a admitir que a norma culta é eficiente, bonita e a única correta. É preciso que os falantes da linguagem subpadrão elevem sua auto-estima lingüística, e como propõe Bagno (2003) devem recusar os argumentos que visem menosprezar o saber lingüístico individual e imporem-se como falantes competentes de sua língua materna. Todas as formas lingüísticas são veículos perfeitos de comunicação e de relação entre as pessoas, e todas têm o seu valor. Sendo assim, torna-se necessário respeitar as variedades da língua, que são, incondicionalmente, uma preciosidade da cultura brasileira.
A partir disso convém salientar que “o que existe, de um lado, em termos de representação ou imaginário lingüístico, é uma norma padrão ideal, inatingível e, do outro lado, em termos de realidade lingüística e social, a massa de variedades reais, concretas, como se encontram na sociedade”. (BAGNO, 2003:161).
Desconsiderar a heterogeneidade no campo da linguagem é negar valor à heterogeneidade da formação do povo brasileiro, pois entre sociedade e língua não há uma relação de mera casualidade, é fato.
Por falar em relação de língua e sociedade tem-se observado que a linguagem influencia os comportamentos dos indivíduos, pois os discursos transmitidos são carregados de valores que são vistos de forma positiva ou negativamente. Ou os comportamentos lingüísticos são aceitos ou recebem uma carga de preconceitos. Mas, o que é inaceitável socialmente se refere à estrutura da linguagem subpadrão. A competência lingüística não é avaliada circunstancialmente, só se considera correta a forma lingüística prescrita por gramáticos ortodoxos. Assim, certas construções são estigmatizadas e ouve-se dizer que o erro é apanágio de pessoas ignorantes, não educadas. Pode-se concluir, portanto, que a língua é veiculo de valores e preconceitos de classe.
Bagno (2003) enfatiza que todo falante, seja culto ou não, está sujeito a todo tipo de influencias externas ou internas, pois ele está sujeito a todo tipo de situação e, portanto, sofre pressão do ambiente em que se encontra da hierarquia social em relação às pessoas com quem está interagindo, ou seja, os falantes de uma língua, talvez até sem perceber, usam constantemente variedades lingüísticas que consideram erradas. É o que coloca Possenti (2002) no que segue abaixo:

Pesquisas mostram que as pessoas utilizam muito mais freqüentemente do que imaginam as formas de expressão que consideram erradas. Este fato, aliás, tem uma forte influencia na mudança lingüística: as formas “erradas” que as pessoas cultas começam a empregar perdem sua conotação negativa e acabam por tornar-se “certas”. Os sociolingüistas em geral defendem a hipótese de que as regras são de natureza variável, de forma que é muito difícil para qualquer pessoa falar durante certo tempo sem passar inconscientemente de uma variedade a outra. (POSSENTI, 2002: 76).

Nesse contexto, a supervalorização da língua culta passa a ser simplesmente uma forma de preconceito com a linguagem subpadrão, ou melhor, com as pessoas que se utilizam dessa linguagem, já que na língua falada há presença de regras variáveis, até mesmo na língua culta. Então, “sendo a língua uma realidade essencialmente variável, em princípio não há formas ou expressões intrinsecamente erradas” (POSSENTI, 2002:86), a linguagem culta, na verdade, serve mais como manutenção do status quo das classes sociais privilegiadas.
1LUFT, Celso Pedro. Língua e Liberdade: por uma concepção da língua materna. 1997, p.14.