quinta-feira, 26 de junho de 2008

DISCURSO: UM ELEMENTO DE IDENTIFICAÇÃO DO SUJEITO

O sujeito na fala: preconceito sociocultural e lingüístico

É através da linguagem que a Sociolingüística procura identificar os reflexos das estruturas sociais e tem por objetivo sistematizar a variação existente na linguagem. A Sociolingüística “considera que o sistema da língua não é homogêneo, mas heterogêneo e dinâmico. As regras, portanto, têm de abranger a variação das formas”. (ORLANDI, 2001:51). Nessa perspectiva o falante de uma língua materna é considerado, e são analisadas as formas lingüísticas usadas pelos falantes em suas respectivas comunidades.
A Sociolingüística relaciona as variantes lingüísticas com as variantes sociológicas, ou seja, com profissão, educação, salário, e ainda com diferenças de raça, sexo, idade, enfim, explica a variação lingüística através de fatores sociais, pois ações lingüísticas e ações sociais são constituídas.
Orlandi (2001, p.55) considera que a língua, mais do que sistema, arranjo de relações abstratas, “se vai passando para uma noção de língua considerada em suas características concretas, de uso, no mundo”.

Se a língua não é mais vista apenas como instrumento do pensamento, como nos formalistas mais ortodoxos, vai-se percebendo que ela também não serve só para transmitir informações, como poderiam deixar crer os que trabalham a linguagem enquanto comunicação. Quando os homens se comunicam, eles fazem muito mais do que apenas informar. (ORLANDI, 2001:55).

Como prova de que o homem não usa a linguagem apenas para informar, (BARRETO, 2005,p.03) em seu ensaio “Desmistificação do erro na oralidade: construção de aprendizagem de LE”, afirma que “o homem é um ser dotado de poder de comunicação, o qual o conduz à reflexão e, conseqüentemente, à produção e propagação do conhecimento”. Para tanto, é necessário o uso da linguagem verbal, cuja prática o homem exerce por excelência.
Voltando a atenção às variantes lingüísticas, veremos que elas podem ser observadas entre a linguagem urbana e a linguagem rural. A linguagem urbana tende, cada vez mais, aproximar-se do que se pode denominar linguagem comum (que é a linguagem que permeia o padrão lingüístico e o subpadrão lingüístico), pela influência niveladora dos meios de comunicação de massa, da escola, da literatura; e a linguagem rural, considerada de menor prestígio, tende a ser arcaizante e, como considera alguns gramáticos ortodoxos, a linguagem dos falantes do povo menos culto.
Para Bagno (2003), “essa mesma relação faz com que a língua das zonas rurais seja mais arcaizante do que a língua das grandes cidades, onde as transformações mais rápidas são acompanhadas no mesmo ritmo por transformações na variedade lingüística” (BAGNO, 2003:124).
Entende-se que os dialetos sociais ou sócio-culturais estão relacionados às classes sociais ou aos falantes que as compõem. Por isso a Lingüística estuda todas as línguas naturais em pé de igualdade, não importando com o grau de desenvolvimento econômico, social ou cultural alcançado pelas comunidades que a falam. Em detrimento da grande injustiça social, acompanhando a desigualdade econômica, observações assistemáticas levam a crer que a escolaridade plena no Brasil, “é um funil por onde só passa uma porcentagem relativamente pequena de brasileiros” (BAGNO, 2003:166), que marcados pelo preconceito lingüístico são bombardeados por atitudes de rejeição diante de determinados interlocutores ou situações.
Os pesquisadores engajados nos grandes projetos de pesquisa lingüística do português brasileiro chegaram à conclusão de que é o nível de escolaridade o principal fator a ser levado em conta na hora de classificar um falante e sua variedade. Nesses projetos, o rótulo falante culto é aplicado ao indivíduo que tem curso superior completo. (BAGNO, 2003:161)

Considerando a língua como criação da sociedade e, ao mesmo tempo, seu reflexo, há que se dizer na existência de falantes que por razões sociais não se sentem retorquidos em seu modo de falar considerando sua norma, a norma padrão, e há, em oposição, falantes que consideram seu modo de falar pouco valorizado e que vêem no outro modelo a forma mais prestigiada e correta. Essa desagregação da linguagem verbal (diz-se, aqui, desagregação no sentido de aceitação e não aceitação) fica evidente em circunstâncias de comunicação onde muito trabalhadores, que necessitam do trabalho e que tem intenção de permanecer, precisam se adequar à forma de linguagem verbal de tal comunidade. Calvet (2002) trata dessa questão referindo-se ao plurilinguismo. “Esta é a situação na qual se encontram os trabalhadores migrantes que chegaram a seu país de escolha sem conhecer ou sabendo bem pouco a língua. Eles são forçados a adquirir essa língua no ambiente de trabalho”. (CALVET, 2002:40). No entanto, há que se admitir que essa mesma problemática se defina dentro de uma única língua, pois apresenta variáveis usadas por comunidades diferentes.
Outro aspecto de variação lingüística importante de ser observado é na variação de sexo, pois é notável a diferença do comportamento social e, por conseguinte lingüístico, entre homens e mulheres. Essa diferença é observada por Pierre Bourdieu (1982:35) citado por Calvet (2002:71) onde ele coloca que,

Como os sociolingüistas freqüentemente observam, as mulheres são mais inclinadas a adotar a língua legítima (ou a pronúncia legítima): do fato de que elas são votadas à docilidade para com os usos dominantes e pela divisão de trabalho entre os sexos, que as especializa no campo do consumo, e pela lógica do casamento, que é para elas a via principal quando não exclusiva, da ascensão social, e onde elas circulam de alto a baixo, estão dispostas a aceitar, especialmente na Escola, as novas exigências do mercado de bens simbólicos.” (CALVET, 2002:71)

Logo, “poderíamos então dizer inversamente que os homens não sentem necessidade de questionar seu modo de falar, que eles o consideram legítimo” (CALVET, 2002:72).
Em decorrência de motivos sócio-culturais e históricos, algumas variedades são consideradas como sendo a melhor, e essa se denomina língua padrão advinda do poder econômico, social e político; as outras variedades são formas lingüísticas consideradas pobres, e vistas é claro, de maneira pejorativa. Essas diferenças são estigmatizadas e, portanto, recebem a maior carga de preconceito e rejeição por parte do conhecedor do português padrão. Em vista disso, a língua já não pode ser considerada apenas valor ideológico, mas como resultado de fatos sociais, passíveis de ser analisados e compreendidos por critérios lingüísticos modernos.
Entretanto, deve-se considerar que todas as variedades da língua são valores efetivos e que não será negando-as e humilhando quem as usa que se fará ascender lingüisticamente tais locutores, pois bem se sabe que o desrespeito pelo diferente não leva a lugar nenhum e que “negar valor ao modo como a pessoa fala seria quase o mesmo que negar valor ao que a pessoa é” (BAGNO, 2003:188). Evidencia-se, portanto, que a língua padrão não é usada como meio de ascensão social, como muitos pensam ser essa a função dela, pelo contrário, ela é usada como mecanismo de exclusão social, de rejeição à forma diferente de linguagem usada por muitos falantes. Assim, o problema não está no que se fala, mas em quem fala e como fala. Então, o preconceito lingüístico é decorrente do preconceito social. E enquanto não houver igualdade social, onde todos possam ser considerados econômicos, social e culturalmente iguais, não haverá, por conseguinte, igualdade lingüística. Dessa maneira, Bagno infere o seguinte:


Como é fácil perceber, o que está em jogo não é a simples “transformação” de um indivíduo, que vai deixar de ser um “sem-língua padrão” para tornar-se um falante da variedade culta. O que está em jogo é a transformação da sociedade como um todo, pois enquanto vivermos numa estrutura social cuja existência mesma exige desigualdades sociais profundas, toda tentativa de promover a “ascensão” social dos marginalizados é, senão hipócritas e cínica, pelo menos de uma boa intenção paternalista e ingênua. (BAGNO, 2005:71)

Em rigor, ninguém comete erro em língua, o que normalmente se comete são transgressões da norma culta. Vale lembrar que a língua é um costume, e como tal, qualquer transgressão, ou chamado erro, deixa de sê-lo no exato instante em que muitos o cometem, passando, assim, a constituir fato lingüístico, registro de linguagem definitivamente consagrado pelo uso. Em vista disso, será útil eliminar do vocabulário palavras como certo e errado ao se julgar as construções lingüísticas de determinados falantes.
A língua pressupõe também cultura e, às vezes, o próprio povo se encarrega de rechaçar uma criação que não se ajuste ao espírito da língua como “evolução natural”. É através da grande variedade de práticas sociais que a aprendizagem, a conservação, a transformação e a transmissão da cultura se realizam, portanto, a linguagem é um fato eminentemente cultural.
Entendendo a língua como um veículo de comunicação, de informação e de expressão entre os indivíduos de uma dada sociedade, pode-se afirmar que todo indivíduo sabe a língua que fala que em linguagem todos são autodidatas, e com pleno êxito. “Todo falante nativo de uma língua sabe essa língua. Saber uma língua, no sentido científico do verbo saber, significa conhecer intuitivamente e empregar com naturalidade as regras básicas de funcionamento dela.” (BAGNO, 2005:35). O que vale lembrar é que, em toda comunidade de fala há formas lingüísticas em constante variação, que uma língua não pára nunca, ou seja, muda sempre e que “o que hoje é considerado como ‘certo’ já foi ‘erro’ no passado. O que hoje é considerado ‘erro’ pode vir a ser perfeitamente aceito como ‘certo’ no futuro da língua” (BAGNO, 2005:143). Portanto, consideram-se aqui, como variantes lingüísticas, as “diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto, e com o mesmo valor de verdade” (TARALLO, 2004:08).
No entanto, para se realizar uma pesquisa sociolingüística é necessário compreender a relação entre língua e sociedade. Essa relação se estabelece ao verificar que a cada situação de fala em que os sujeitos se inserem e da qual participam, nota-se que a língua falada é heterogênea e diversificada. Da mesma forma, essa heterogeneidade existe economicamente, culturalmente, além das diversidades de raça, sexo, idade. Como coloca Luft (1997,p.67) “em sociedades econômica, social e culturalmente heterogênea, é inevitável a heterogeneidade no campo da linguagem”. Assim, cada falante possui um conhecimento internalizado de sua língua e a partir disso é possível dizer que a “gramática” de uma pessoa é mais simples que a de outra, mas nunca que a fala é errada. E ainda, como apresenta Saussure “a linguagem tem um lado individual e um social, sendo impossível conceber um sem o outro” (SAUSSURE, 2004:16). Portanto, fica evidente que o uso particular que cada falante faz da língua pode variar, segundo seu nível de instrução, condição sócio-econômico, idade, região e, principalmente, a situação em que acontece a fala, ou seja, os indivíduos que falam a mesma língua, não falam exatamente iguais, e isso acontece porque o homem, afirmando o que ora foi escrito, pertence a diversos grupos sociais e, consequentemente, é levado a falar de diversas maneiras. Assim, “em toda língua do mundo existe um fenômeno chamado variação, isto é, nenhuma língua é falada do mesmo jeito em todos os lugares, assim como nem todas as pessoas falam a própria língua de modo idêntico” (BAGNO, 2005:53).
Em toda comunidade lingüística há julgamentos de valores tanto lingüísticos quanto sócio-econômicos, portanto, “como qualquer língua, ou variedade de língua, é propriedade de um grupo social, vemos surgir julgamento de valores que se prendem às línguas, quando, na verdade, se aplicam às pessoas que falam essas línguas: tal língua é considerada admirável, outra desprezível” (BUYSSENS, 2002:103), então, fica subentendido o preconceito social disfarçado de preconceito lingüístico. Julga-se a pessoa pelo que ela representa não pelo que ela é, rejeita-se sua origem classificando-a como ignorante ou até mesmo pobre, mas é importante lembrar que poder econômico não corresponde, muitas vezes, com capacidade lingüística.
É muito comum se considerarem as variedades lingüísticas desprestigiadas como erradas e isso acontece porque o valor e a importância dada aos usos lingüísticos são determinados segundo as classes sociais dominantes. Assim, quando alguém fala, logo há a preocupação de observar se trata de alguém ignorante, pobre, de outra região, ou seja, diferente de quem ouve. E percebendo algumas características na fala, quem ouve costuma chamar de erros. É pensando nessa situação desconfortável para os falantes (de achar que sua fala é inferior, errada) que surge a necessidade de uma pesquisa de campo em que se concretizará o que foi estudado em algumas bibliografias sobre a língua materna.
Sendo a língua falada veículo lingüística de comunicação usada especificamente nas situações comuns de interação social, a enunciação dos fatos, as idéias, opiniões, acontecem sem a preocupação de como expressá-las e são essas partes do discurso, ou seja, essas situações naturais de fala que constituem o material básico dessa pesquisa sociolingüística.

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