quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

RESENHA DE LAURINA, DE ILA NUNES


DESALIENAÇÃO E MEDOS: SHARAZADE REINVENTADA EM LAURINA

Robério Pereira Barreto[1]

            A arte narrativa tem a capacidade de marcar os inconscientes individuais e coletivos, fato! A humanidade traz em seu arcabouço social e no seu escopo cultural, a transferência de estórias e histórias de outras sociedades através da intertextualidade; seja na oralização – contos falados à beira da fogueira ou à cama na hora de dormir – feitos pelos adultos – mães e avós – e pelos mais velhos da família e da comunidade quando, em rituais festivos, leem em voz alta obras literárias clássicas escritas que atravessam milênios e culturas.

Neste texto faço uma leitura carregada de “miopias”, da obra Laurina, de Ila Nunes, ilustrada pelo multi-artista, Gabriel Ferreira e publicada pela editora Mondrongo (2016). Provoco, então, o futuro leitor de Laurina a identificar ou não, momentos em que a autora faz alusão, inconsciente talvez, a As mil e uma noites. Sabemos que Sharazade é protagonista da narrativa clássica, que diante medo de perder a própria vida, mostra-se criativa e conta histórias de aventuras variadas ao seu algoz, o Rei que a desposara com o intuito de matá-la para garantir a sua vingança contras as mulheres depois de seu grande amor para outro.

            O que apresento a seguir é um olhar “míope” talvez, de um leitor que, após mergulhar na obra Laurinha: tecendo os fios de seu tapete (2016), de Ila Nunes, publicação ainda quente, acaba de ser lançada; ver traços significativos da potência do sujeito, desde a infância para vivência com a liberdade, até sua fase adulta, retomada pelas reservas mentais, dentre as quais se destaca o medo da perda de entes queridos ou da autoestima. (marcas presente em As mil e uma noites – Rei Shariar; Laurina – Mãe de Laurina).

A questão do medo da perda é mostrada aqui, através dos diálogos da personagem central da narrativa, Lauriana é homônima à obra e sua mãe. Laurinha como toda criança, sonha em voar para além da imaginação que é intrínseca à primeira infância. Nesta narrativa e em tom simples, Ilha Nunes expõe os medos velados que, nós, pais e mães depositamos em algumas desculpas para que não ocorra a desalienação de nossos filhos; mesmo que isso seja no plano da imaginação infantil nos choca enquanto seres alienantes e alienadores de bens e pessoas.

Um pouco da narrativa, na qual, Luarina mostra sua potência imaginativa: “Laurina, que era só uma menina, não tinha agulha nem linha, não sabia costurar, mas queria um tapete para voar” (NUNES, 2016, p. 2). Ver-se que, Laurina, mesmo não tendo os recursos para a confecção do seu tapete, imagina voos e as possibilidades de conhecer novos mundos.

Sem querer entrar no universo severo do pedagogismo, vale a lembrança das Zonas de Desenvolvimento, de Vygotsky. A presença do adulto referenciando a vontade de potência de Laurina. “sua mãe decidiu ensiná-la a costurar: - passa a linha por aqui, pelo buraco da agulha, dá um nó cá, espeta o pano acolá” (NUNES, 2016, p.4).

Ila Nunes intertextualiza e transfere o medo de Sharazade em perder a vida – As Mil e uma noites –  A rainha conta estórias de aventura ao rei como num ato contínuo, envolve-o em aventuras, fazendo-o esquecer de sua vingança: matar as futuras esposas logo após casar-se com elas. A mãe de Laurina desfaz os pontos do tapete tecido pela filha, justificando sua ação de desmanchar os nós, em nome da estética que é só sua; é aí que deixa vir à tona, seu medo da perda da filha para o mundo – Laurina sonha em construir seu próprio tapete para voar pelo mundo – o inconsciente da mãe de Laurina fala em nome da razão, levando à castração da personagem central.

Com esta atitude não respeita o ato criativo da criança, deixando-a triste e se sentido incapaz de fluir no universo da imaginação. Tudo isso para atender a uma racionalidade do mundo adulto que, por essência é castrador. Temos em Laurina, uma série de provocações sobre a estética e os modelos que nós, adultos, projetamos nas crianças, devido aos medos sociais e individuais resultantes de nossas reservas mentais. (ainda bem que  ficção literária existe para nos fazer refletir e nos salvar da insensibilidade do mundo racional e técnico dos adultos).

Kristeva (1974, p. 60) ao estudar o texto literário afirmava que todo texto se constitui a partir de um mosaico de fragmentos e é a absorção e a transformação de outro texto. Vejo tal afirmação ser concretizada na escrita de Ila Nunes, Laurina (2016). Enquanto leitor, recebo a narrativa de Nunes, vendo-a gravitar no eixo das memórias de leitura advinda das Mil e uma noites, à medida que também recordo da presença de: Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, Simbad, o Marujo, Ali Babá e os Quarenta Ladrões, em As mil e uma noites.

Em ambas as obras: As mil e uma noites e Laurina (2016), a perda do bem maior das protagonistas: Sharazade a sua vida e das jovens do reino, representando o fim da liberdade. Já em Laurina, considerando que, para a mãe, a filha é sua razão de viver, neste caso, o voo – liberdade – de Laurina, representaria à genitora da protagonista, perder parte de si mesma.

Por fim, a leitura de Ila Nunes – Laurina – deixa uma lição clássica: A liberdade e a criatividade são conquistas adquiridas no e com o exercício da confiança. Ambas levam à discussão da autoestima e permite a construção do equilíbrio emocional de nós mesmos e de nossos filhos

Bibliografias

NUNES, Ila. Laurina. Ilhéus: Mondrongo, 2016.

KRISTEVA, J. La révolution du langage poétique. Paris, Seuil, 1974.

 

 

 



[1] Professor Adjunto da UNEB – DCH – V, Poeta e Haicaísta no Facebook.

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