RESENHA DE LAURINA, DE ILA NUNES
DESALIENAÇÃO E MEDOS: SHARAZADE REINVENTADA EM LAURINA
Robério Pereira Barreto[1]
A arte
narrativa tem a capacidade de marcar os inconscientes individuais e coletivos,
fato! A humanidade traz em seu arcabouço social e no seu escopo cultural, a transferência
de estórias e histórias de outras sociedades através da intertextualidade; seja
na oralização – contos falados à beira da fogueira ou à cama na hora de dormir
– feitos pelos adultos – mães e avós – e pelos mais velhos da família e da
comunidade quando, em rituais festivos, leem em voz alta obras literárias
clássicas escritas que atravessam milênios e culturas.
Neste texto faço uma leitura carregada de “miopias”, da obra
Laurina, de Ila Nunes, ilustrada pelo
multi-artista, Gabriel Ferreira e publicada pela editora Mondrongo (2016). Provoco,
então, o futuro leitor de Laurina a identificar
ou não, momentos em que a autora faz alusão, inconsciente talvez, a As mil e uma noites. Sabemos que Sharazade
é protagonista da narrativa clássica, que diante medo de perder a própria vida,
mostra-se criativa e conta histórias de aventuras variadas ao seu algoz, o Rei
que a desposara com o intuito de matá-la para garantir a sua vingança contras
as mulheres depois de seu grande amor para outro.
O que apresento
a seguir é um olhar “míope” talvez, de um leitor que, após mergulhar na obra Laurinha: tecendo os fios de seu tapete
(2016), de Ila Nunes, publicação
ainda quente, acaba de ser lançada; ver traços significativos da potência do
sujeito, desde a infância para vivência com a liberdade, até sua fase adulta,
retomada pelas reservas mentais, dentre as quais se destaca o medo da perda de
entes queridos ou da autoestima. (marcas presente em As mil e uma noites – Rei
Shariar; Laurina – Mãe de Laurina).
A questão do medo da perda é mostrada aqui, através dos diálogos
da personagem central da narrativa, Lauriana é homônima à obra e sua mãe. Laurinha
como toda criança, sonha em voar para além da imaginação que é intrínseca à
primeira infância. Nesta narrativa e em tom simples, Ilha Nunes expõe os medos
velados que, nós, pais e mães depositamos em algumas desculpas para que não
ocorra a desalienação de nossos filhos; mesmo que isso seja no plano da
imaginação infantil nos choca enquanto seres alienantes e alienadores de bens e
pessoas.
Um pouco da narrativa, na qual, Luarina mostra sua potência
imaginativa: “Laurina, que era só uma menina, não tinha agulha nem linha, não
sabia costurar, mas queria um tapete para voar” (NUNES, 2016, p. 2). Ver-se que,
Laurina, mesmo não tendo os recursos para a confecção do seu tapete, imagina voos
e as possibilidades de conhecer novos mundos.
Sem querer entrar no universo severo do pedagogismo, vale a
lembrança das Zonas de Desenvolvimento, de Vygotsky. A presença do adulto
referenciando a vontade de potência de Laurina. “sua mãe decidiu ensiná-la a
costurar: - passa a linha por aqui, pelo buraco da agulha, dá um nó cá, espeta
o pano acolá” (NUNES, 2016, p.4).
Ila Nunes intertextualiza e transfere o medo de Sharazade em
perder a vida – As Mil e uma noites – A rainha conta estórias de aventura ao rei
como num ato contínuo, envolve-o em aventuras, fazendo-o esquecer de sua
vingança: matar as futuras esposas logo após casar-se com elas. A mãe de
Laurina desfaz os pontos do tapete tecido pela filha, justificando sua ação de desmanchar
os nós, em nome da estética que é só sua; é aí que deixa vir à tona, seu medo
da perda da filha para o mundo – Laurina sonha em construir seu próprio tapete
para voar pelo mundo – o inconsciente da mãe de Laurina fala em nome da razão,
levando à castração da personagem central.
Com esta atitude não respeita o ato criativo da criança,
deixando-a triste e se sentido incapaz de fluir no universo da imaginação. Tudo
isso para atender a uma racionalidade do mundo adulto que, por essência é castrador.
Temos em Laurina, uma série de
provocações sobre a estética e os modelos que nós, adultos, projetamos nas
crianças, devido aos medos sociais e individuais resultantes de nossas reservas
mentais. (ainda bem que ficção literária
existe para nos fazer refletir e nos salvar da insensibilidade do mundo
racional e técnico dos adultos).
Kristeva (1974, p. 60) ao estudar o texto literário afirmava
que todo texto se constitui a partir de um mosaico de fragmentos e é a absorção
e a transformação de outro texto. Vejo tal afirmação ser concretizada na
escrita de Ila Nunes, Laurina (2016).
Enquanto leitor, recebo a narrativa de Nunes, vendo-a gravitar no eixo das
memórias de leitura advinda das Mil e uma
noites, à medida que também recordo da presença de: Aladim e a Lâmpada
Maravilhosa, Simbad, o Marujo, Ali Babá e os Quarenta Ladrões, em As mil e uma noites.
Em ambas as obras: As
mil e uma noites e Laurina
(2016), a perda do bem maior das protagonistas: Sharazade a sua vida e das
jovens do reino, representando o fim da liberdade. Já em Laurina, considerando que, para a mãe, a filha é sua razão de
viver, neste caso, o voo – liberdade – de Laurina, representaria à genitora da
protagonista, perder parte de si mesma.
Por fim, a leitura de Ila Nunes – Laurina – deixa uma lição clássica: A
liberdade e a criatividade são conquistas adquiridas no e com o exercício da confiança.
Ambas levam à discussão da autoestima e permite a construção do equilíbrio
emocional de nós mesmos e de nossos filhos
Bibliografias
NUNES, Ila. Laurina. Ilhéus: Mondrongo, 2016.
KRISTEVA, J. La révolution du langage poétique. Paris, Seuil, 1974.